'Só renda ou só ensino não supera pobreza'
Entrevista
Brasília, 31/10/2008
'Só renda ou só ensino não supera pobreza'
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Especialista critica idéia de que programa como Bolsa Família ou investimento em educação, por si só, consegue erradicar miséria
Crédito: Secretaria da Educação de MT
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Bolsa Família
O Bolsa Família atende hoje 11 milhões de domicílios. Podem se inscrever no programa famílias em que a renda per capita seja de no máximo R$ 120 por mês. Ao entrar no programa, os beneficiados se comprometem a manter crianças e adolescentes na escola, a cumprir o calendário de vacinação e a agenda de pré e pós-natal.
Um estudo de 2007 do Centro Internacional de Pobreza aponta que o Bolsa Família tem efeitos no Índice de Gini, que mede o grau de desigualdade de renda. Segundo o estudo, o Bolsa Família ajudou a diminuir em 21% o Índice de Gini brasileiro entre 1995 e 2004, que caiu cinco pontos nesse período.
DAYANNE SOUSA
da PrimaPagina
O Bolsa Família, maior programa de transferência de renda do mundo, completou cinco anos em outubro. No lançamento oficial, em 20 de outubro de 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva indicou que a iniciativa uniria vários programas de “apoio individual”, como Bolsa Escola e Vale Gás, em um só, dirigido "a todo o núcleo familiar". Porém, as raízes do Bolsa Família não são apenas os programas do final da década de 90 e começo dos anos 2000, mas a Constituição de 1988, que enfatizou o reconhecimento dos direitos sociais e a necessidade de reverter a histórica dívida do Brasil com os pobres, avalia Tatiana Feitosa de Britto, especialista em políticas públicas e consultora do Senado para assuntos de educação.
É na articulação entre as diversas políticas originadas da Constituição que se pode vislumbrar uma superação de fato da pobreza. Sozinho, o Bolsa Família, como qualquer outro programa de transferência de renda, é incapaz de tirar as pessoas da pobreza permanentemente, afirma Tatiana, que trabalhou até 2004 no Ministério de Desenvolvimento Social e Combate a Fome.
Do mesmo modo, defende ela, não se pode ter uma “fé cega” na idéia de que apenas investimentos em outras áreas — como educação e capacitação — farão esse papel. "Você precisa de uma combinação muito bem articulada, que pense não só a capacitação, mas a inserção no mercado de trabalho. Não só a educação, mas a qualidade da educação", argumenta.
Formada em Relações Internacionais, Tatiana escreveu um artigo sobre o Bolsa Família para a revista Poverty in Focus, do Centro Internacional de Pobreza — um instituto de pesquisa do PNUD em parceria com o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). O número mais recente da revista é uma edição especial sobre programas de transferência de renda na África e na América Latina. Em seu texto, a pesquisadora diz que a erradicação da pobreza “só pode ser atingida com uma combinação sinergética de políticas públicas e crescimento econômico, o que está muito além do escopo do Bolsa Família”.
Em entrevista por telefone à PrimaPagina, ela comentou o programa brasileiro, que hoje atende 11 milhões de domicílio e investiu, em seus cinco anos, R$ 41 bilhões, segundo o governo federal.
Qual o balanço que você faz desses cinco anos do Bolsa Família?
Tatiana Britto - O Bolsa Família aparece sempre como uma referência importante não só pela dimensão do programa, mas pelo tempo. Já é um programa consolidado. Mas, claro, quando pensamos num balanço de desafios, estamos pensando num programa que não é acabado. Toda política pública sempre tem um espaço para aperfeiçoamento e para melhorias. É claro que um programa de transferência de renda só tem um impacto duradouro, de forma que as pessoas consigam sair da situação de pobreza, se não for só programa de transferência de renda. Tem que ter outras coisas relacionadas, outras políticas públicas.
Que outras políticas são essas?
Tatiana - Educação, e também inserção no mercado de trabalho. Mas às vezes as pessoas falam com uma fé muito grande nessas coisas. Não pode ser uma fé cega nessas propostas de saída — dizer que basta criar cursos de capacitação para as pessoas ou que basta as crianças irem para escola que daqui a dois, três anos, a situação delas vai ter mudado. Na verdade, você precisa de uma combinação muito bem articulada que pense não só a capacitação, mas a inserção no mercado de trabalho. Não só a educação, mas a qualidade da educação que essas crianças estão recebendo.
Mas você acredita que, dentre as estratégias de combate à pobreza possíveis, a transferência de renda seja a mais eficiente?
Tatiana - Dos diretamente relacionados à questão da pobreza, talvez os programas de transferência de renda tenham sido os mais exitosos nos últimos anos. Por terem características inovadoras, chegarem diretamente aos pobres — eles têm um ganho de eficiência em relação a outros programas. Mas a pobreza é multidimensional. Não é só renda — é pobreza de capacidade, de educação, de moradia, de alimentação. O combate à pobreza envolve todas essas políticas, não dá para pensar só em renda.
Em seu último artigo, você aborda as críticas feitas no início do Bolsa Família que diziam que os beneficiados ficariam dependentes da renda recebida. Como você vê essa e outras críticas?
Tatiana - O Bolsa Família, em alguns momentos, foi acusado de duas coisas opostas e até paradoxais. Por um lado, alguns críticos apontavam que era um tipo de esmola que se estava dando, que aquele dinheiro não teria efeito nenhum para a vida daquelas pessoas. Por outro lado, havia pessoas que diziam que era um dinheiro muito fácil e que as pessoas iriam se acomodar e ficar só recebendo a transferência de renda. Na verdade, o que a gente está vendo não é uma coisa nem outra. O dinheiro está sendo suficiente para ter um impacto na situação de pobreza dessas famílias e, por outro lado, essa questão da dependência também não está completamente comprovada. O que a maioria dos indicadores e pesquisas têm mostrado é que os beneficiários do programa têm uma participação no mercado de trabalho até maior que outros que têm o mesmo nível de pobreza, situação econômica igual mas que não recebem benefícios.
Você divide os resultados do programa em ganhos imediatos e ganhos a longo prazo. Quais são eles?
Tatiana - O Bolsa Família é um programa de transferência de renda com condicionalidades. A transferência de renda tem esse foco na pobreza imediata, e a idéia é levar àquelas pessoas um nível mínimo de subsistência. A justificativa por trás das condicionalidades é que se está combatendo a pobreza futura, estão sendo dadas condições para que essas pessoas possam investir em capital humano e para que as crianças dessas famílias não sejam pobres no futuro.
Mas você acredita que o Bolsa Família seja eficiente nesses dois âmbitos?
Tatiana - A questão do futuro é ainda uma questão muito debatida na academia. Não que as famílias não estejam cumprindo as condicionalidades, mas, para que as pessoas deixem de ser pobres, não basta elas freqüentarem a escola. Esse é um dos fatores. Todos os programas são ainda muito novos para a gente conseguir medir o impacto no futuro. Então, quando a gente fala do impacto da condicionalidade, o que a gente está falando é se as crianças estão indo mais à escola ou se estão tendo uma situação de saúde melhor. Agora, de que forma essa situação de saúde ou a escolaridade está se refletindo na pobreza futura, eu não conheço nenhum estudo que já tenha isso, porque são programas muito novos.
Então, quais seriam os desafios do programa hoje?
Tatiana - Existem algumas coisas que o programa teria que enfrentar. Tem uma contradição na parte de legislação que é uma coisa ainda não muito bem resolvida: se o programa teria a pretensão de se tornar uma espécie de renda mínima, seria universal, incondicional, ou se seria temporário, voltado para emancipar as pessoas de uma situação de pobreza. Outra coisa importante para o programa é que ele ainda tem um nível de exclusão muito significativo. Tem uma população que deveria ser beneficiária, que está abaixo da linha de pobreza do programa, mas que ainda não conseguiu entrar no programa. Isso ocorre porque os mais pobres são geralmente os mais excluídos, têm pouco acesso aos meios de informação e pouco acesso aos meios de se inscrever no programa. Então você tem aí um plano de focalização que precisa ser trabalhado.
Fonte: PNUD
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